APRESENTAÇÃO 

Mergulhando no Profundo Mar Azul da Literatura Brasileira:

Escritos e Narrativas de uma Professora Surda de Literatura Brasileira.



-- "Literatura salva, Vera !", costumava me dizer meu professor, Godofredo de Oliveira Neto, da disciplina de Literatura Brasileira da UFRJ, quando fui sua aluna especial de doutorado na universidade.

     E ele tinha razão. Se não fosse a Literatura, eu não estaria aqui hoje contando neste site um pouco da história da minha vida e distribuindo a vocês um pouco da minha experiência e saberes adquiridos ao longo de 30 anos de magistério. A Literatura me tornou o que sou e diria mais : salvou a minha vida ! Foi pelo amor aos livros que me tornei professora e superei uma grave moléstia. E continuo superando os obstáculos e revezes naturais da vida por amor aos livros. 

      Quando era criança, fui diagnosticada com um Q.I. elevado. Corria o ano de 1959 e eu tinha apenas três anos de idade. E nessa idade já conseguia ler. Hoje esse tipo de criança é conhecida como portadora de altas habilidades. Com essa tenra idade, meus pais já sabiam que eu não era uma criança comum.  Meninas comuns gostavam de brincar de bonecas, fazem "criancices" normais da idade. Eu, ao contrário, era uma criança séria, compenetrada, que já revelava amor pela arte da palavra. Nada me dava maior prazer do que utilizar e descobrir o significado de palavras difíceis no dicionário. E escrevê-las e criar frases com elas também. Talvez isso tenha me salvo quando, ao se aproximar meu quarto aniversário, fui acometida de sarampo. E perdi a audição dos dois ouvidos. Recebi o diagnóstico de surdez bilateral profunda.  E pelo fato de ter tido tempo de criar uma memória auditiva e já gostar de ler e escrever, isso pouco alterou minha rotina. Continuei aprendendo e meus pais me incentivando a descobrir a magia e o significado das palavras. Atribuo a isso a superação da barreira da surdez.

      Quando completei seis anos, em 1962, era a época de finalmente ir para a tão sonhada escola. Eu tinha Ilusões sobre esse espaço do saber que tanto meus pais me falavam. Ali seria um lugar mágico onde eu poderia chegar ao Olimpo da Cultura e conviver com pessoas como eu, passando o dia todo a me desenvolver intelectualmente. Doce ilusão ! No primeiro dia de aula, D. Yara, era esse o nome da minha primeira professora, já começou a aula pedindo às crianças para utilizarem o caderno de caligrafia e desenharem as vogais do alfabeto. Já comecei a ficar inquieta. Mas obedeci. Nunca antes desenvolvera a minha escrita num caderno de caligrafia. Desenhar as letras, não sei como explicar, era a coisa mais fácil do mundo para mim. Simplesmente eu olhava e reproduzia igual sem necessidade de seguir as curvas e linhas demarcadas em algum caderno de caligrafia. Mas, vamos lá, recordo-me que fiz o que a professora pediu. E passei pelo menos meia hora preenchendo aquele caderno. Desnecessário dizer que terminei isso antes do tempo e entreguei o caderno para a professora primeiro que as outras crianças.

      No segundo tempo de aula, depois do intervalo do recreio, a professora fez a mesma coisa mas agora eram os números que elas apresentava às crianças desenhados em cubos de madeira e pedia que enfileirássemos os mesmos de acordo com o que ela escrevia no quadro negro. Se ela desenhava o número 2, todas as crianças teriam de pegar cubos com esse número, que se encontravam amontoados dentro de uma caixa de madeira, e cada qual criar sua pilha de cubos com aquele número. Foi aí que me dei conta que estava no lugar errado para mim. Ela me tratava como um bebezinho. Eu já sabia ler e escrever. E meu vocabulário era mais extenso que o dos meus coleguinhas. Como meus pais já a tinham avisado que eu era surda, ela se dirigia a mim falando de frente comigo e articulando bem as palavras. Mas fora isso, todo o resto me parecia uma tremenda perda de tempo. 

      Meu pai naquele dia ficou encarregado de me apanhar na escola. E enquanto ele me puxava pela mão em direção ao automóvel para me levar de volta para casa, eu exclamei com a voz carregada de frustração: 

-- "Pai, não quero mais ir para essa escola. A Professora é uma idiota. Você não explicou para ela que eu já sabia ler e contar ?", e narrei como fora meu dramático primeiro dia na escola.  

     Meu pobre pai, com o semblante carregado e triste, ouviu tudo calado e disse que conversaria comigo em casa. Ao chegarmos, minha mãe já tinha preparado um lanche para nós e quando acabamos de comer, ele me levou para a sala para conversar. E contou que, de fato, conversara com a professora. Mas as leis e as normas da escola e da Secretaria de Educação da época não permitiam que uma criança da minha idade frequentasse uma classe mais elevada com alunos mais velhos. E que propunha que eu por enquanto ficasse por lá mesmo até que ele conseguisse encontrar uma escola especial para mim. Eu recordo que fiquei muito contrariada. De fato, ser obrigada a frequentar uma classe de alunos com quem nem podia conversar direito e achando as brincadeiras de todos pueris, regidas por uma professora incapaz de compreender minhas necessidades e anseios foi uma tortura. Não me recordo de pior época acadêmica que vivi em toda minha estrada educativa. Esse sofrimento durou 5 meses. Até que um dia explodi. Não aguentei mais. Quando minha mãe veio me acordar um dia para me vestir para ir para a escola, simplesmente fiz o que deveria ter feito há tempos. Abri um berreiro horrível que deve ter sido ouvido do outro lado da rua. Rolei no chão sujando minhas roupas de propósito, rasguei o vestido e atirei os sapatos, que ela acabara de calçar com tanto cuidado e desvelo pela janela, num ataque de fúria incontido. Não houve choro nem vela, rogos e súplicas que me fizesse ir para aquela escola de novo. E meus pais desistiram finalmente. Teriam de encontrar uma outra solução.

         Curiosamente a saída para do impasse veio através de um médico, o meu pediatra. No dia que fui para minha consulta mensal costumeira ao seu consultório, minha mãe contou a ele o ocorrido. Ele então disse que tinha uma solução para o meu caso. Que daria um atestado médico que minha mãe deveria levar para a Secretaria de Educação recomendando que eu tivesse uma educação com acompanhamento de professores particulares. Que fariam a cada mês um relatório sobre meus progressos na aprendizagem em casa. E assim foi feito. Passei a ter aulas supervisionadas e controladas por professores particulares que todos os meses emitiam relatórios e me passavam exercícios e desafios mais compatíveis com meu nível intelectual. E, depois de dois anos, finalmente eu pude frequentar uma classe regular com crianças mais velhas do que eu, mas então já tinha também acompanhamento psicológico que me permitia controlar melhor a minha índole um tanto rebelde em aceitar as diferenças e idiossincrasias do meu comportamento e as de outras pessoas com quem passei a conviver na escola.

             Tive sorte, é verdade. Muita sorte. A começar pelo apoio de meus pais e também de meus queridos padrinhos de batismo que contribuíram financeiramente  para que eu pudesse ser educada dessa forma. Naquela época tudo era mais difícil, trabalhoso, caro e imperava a famosa educação bancária tão condenada por Paulo Freire . Não havia estímulos, estudos e investimentos no Brasil em crianças com necessidades especiais e no meu caso em dose dupla: com altas habilidades ainda por cima com grave problema auditivo. A superação dessa dupla barreira foi um processo doloroso, mas que no final se revelou um sucesso graças ao empenho de meus pais e também de alguns excepcionais professores que investiram e acreditaram no meu potencial. 

      Fui uma crianças difícil, mas ao mesmo tempo, fui levada a crer que podia superar as dificuldades por pais amorosos que não desistiam nunca e procuravam passar essa certeza de que  sempre havia uma solução e que eu era capaz de encontrá-la. Essa fé, investimento e crença inabalável  na minha capacidade fizeram toda a diferença. E me proporcionaram lições por toda a vida que se me forneceram a fórmula mágica que apliquei anos mais tarde em meus relacionamentos com meus alunos e que me conduziram ao sucesso. Consegui me formar em Engenharia-Química, Análise de Sistemas , Pedagogia , Letras e Licenciatura em Matemática. Duas pós-graduações em Educação e Letras, um mestrado em Educação e outro em Letras. Nada mal para quem perdeu a audição aos quatro anos e tinha problemas de adaptação na escola. Alguns fatos marcantes da minha trajetória acadêmica são contados aqui em RELATOS, que é uma das opções do menu deste site.

         Assim sendo, resolvi construir esse site, a convite do meu amigo Erick, autor do maravilhoso site Diário da Poesia. Nele colocarei minhas crônicas, escritos, artigos,sites e blogs que visitava com frequência e recomendava para meus queridos alunos. Batizei-o com esse nome pois sempre adorei o mar e considero que estudar literatura é mergulhar na beleza e na profundidade de suas águas azuis e esse mergulho conduz a descobertas e reflexões fascinantes que elevam nosso espírito. Penso que há uma ligação íntima entre o mar e histórias. Para mim eles sempre estiveram associados na mente humana. O mar é uma excelente metáfora para a literatura , para os prazeres e desafios que ela nos traz, sua imensidão , sua profundidade sua variedade, sua beleza sempre nova e mutante, sua capacidade de nos alimentar de forma quase infinita.

         Neste site, construído com carinho, coloco à disposição do púbico-leitor relatos de minha trajetória acadêmica, saberes acumulados e aventuras vividas na fascinante estrada do magistério dedicando-me ao ensino de Literatura Brasileira tanto para alunos surdos e ouvintes, pois trabalhei no Instituto Nacional de Educação de Surdos e ministrei aulas de Literatura Brasileira . Tive uma trajetória longa e profícua repleta de grandes ensinamentos que pretendo colocar aos poucos aqui. Afinal são trinta anos de lutas nesse maravilhoso ofício de ensinar. Fui mestra e aprendiz. Meu querido Paulo Freire uma vez declarou : "Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo." Acrescentou ainda que o processo educativo é uma ação, portanto, não se educa atribuindo a passividade ao aluno, mediatizada pelo mundo. Ou seja, todo o contexto da existência humana participa do processo educativo e não cabe silenciar uns com poder de outros. É nisso que acredito e sempre acreditarei pois tive inúmeras provas ao longo da minha profissão.

      Espero que esse site contribua para que surjam novos leitores e que eles possam continuar a viver essa experiência fascinante e imorredoura que é a leitura e o estudo da literatura brasileira. 

         

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